Le
Pen e a Frente Nacional crescem há anos na França. Após as ameaças de saída da
Grécia, Itália, Espanha e Portugal, a Grã-Bretanha foi quem de fato saiu da
União Europeia – o Brexit. No Brasil, o fascismo jurídico a cada dia parece
ganhar mais entusiasmo popular e com seu gozo doentio pelo linchamento moral da
“política” ameaça, inclusive, extrapolar seu escopo elitista e antipetista
inicial rumo à sacralização do judiciário por si mesmo. Mas a hora da verdade
foi a eleição para presidente dos Estados Unidos: “Trump ganhou!” parece ter
sido um lamento geral a percorrer o mundo por um instante, tal lamento uniu
gregos e troianos, direitistas e esquerdistas, socialdemocratas e
conservadores. Ora, qual a razão de tamanho consenso? Qual pressuposto
fundamental partilhado por todos e que coube a esse indivíduo romper?
Aparentemente,
Trump é sintoma final do fim da era multicultural, do fim da globalização
harmônica e consensual. O eterno engodo socialdemocrata e liberal da escolha
pelos “menos pior”, a repetição constante da mobilização emergencial fracassou
de maneira significativa pela primeira vez em várias décadas. O “taticismo”,
que sempre impedia qualquer consideração séria de uma estratégia política, de
um projeto social, não resistiu à crise econômica e nem a vitória do status quo pôde ser assegurada pelas
manipulações dos marqueteiros mundiais. Agora se expressa claramente a revolta
contra a aclamação universal do privilégio, mas ela eclode através do bárbaro
egoísmo de uma classe trabalhadora despolitizada e nada solidária. É através de
discursos fascistas que o mundo hodierno demonstra a ilusão do “fim da
ideologia”.
A
lição que se pode tirar de toda essa conjuntura diz respeito a nós mesmos, a
esquerda. Qual caminho foi percorrido para que o limitado multiculturalismo
decaísse no puro ódio? Como a era cuja a forma de pensamento e ação era a
pluralidade e diferença deu à luz ao monstro protofascista? Há muito sabemos quem
é nosso inimigo derradeiro, a quem devemos dirigir a “luta final”, qual o poder
capaz de tudo para destruir a emancipação, porém devemos agora nos questionar
sobre nossos obstáculos de maneira mais ampla: qual o nosso primeiro inimigo? Talvez na mais recente experiência
de Ocupação da UNB se possa perceber
como os últimos oito anos puderam agravar o quadro lamentável de ruína da práxis crítica e ilustrem o resultado
perverso da substituição do choque dual pelas localidades.
A
primeira impressão, sob o ponto de vista de visitante esporádico da referida ação
política na universidade, era de avanço em aspectos significativos. Ocorreram
diversas ocupações menores de 2008 até 2016, mas a seriedade do movimento atual
parecia distanciá-la desses eventos menores, apesar de sua relativa pouca
visibilidade em relação ao espetáculo midiático do “Fora Timothy”. Agora a UNB
estava diante de uma Ocupação generalizada que foi além da anterior ao ocupar
não apenas a reitoria, e sim diversos prédios, implantar um sistema de
comunicação baseado nas novas tecnologias e mobilizar um número ainda maior de
militantes em suas barricadas, se não em suas assembleias.
Mas algo chama atenção a
partir de um olhar formado em 2008: o número de lugares
reservados e restritos, a regionalização dos milititantes em acordo com seus
interesses imediatos (locais de estudo), políticos (os partidos e seus
interesses na visibilidade da reitoria) e identitários (mulheres, negros,
etc.). A consolidação de espaços políticos seccionados segundo a identidade era
universalmente tida como a marca da modernização e consequência do movimento
estudantil hodierno, suplantando mesmo considerações práticas sobre a
viabilidade numérica, o contingente de pessoas para manterem as ocupações do
movimento negro ou das feministas. De fato, as pautas principais eram o fim da
reforma do ensino médio, a retirada da “PEC 241” e o reconhecimento do primeiro
CA étnico, o CA Quilombo.
O
enclausuramento tomado por radicalidade, o regozijo consigo mesmo em detrimento
de qualquer totalização, mostrou seu resultado numa noite casual, através de
gestos banais, precipitando por meio da contingência, a verdade da loucura em
que nos encontramos. Em parte por ironia do destino, em parte por má-fé dos envolvidos, o estopim do
problema se deu em meio aos mais inofensivos representantes do movimento
estudantil, os estudantes da Faculdade de Educação (FE). Enquanto se encontrava
um militante do pretenso “CA Quilombo” na FE, um integrante da comissão de
segurança lhe perguntou: “É seu esse casaco? Não é da minha colega?”. A
resposta furiosa ressaltou o racismo de inquirir um negro sobre roubo,
denunciou o peso secular do preconceito e opressão racial cristalizados naquela
pontual indagação.
Findado aí o caso, alcançar-se-ia,
talvez, justiça. O frenesi gerado pelo maniqueísmo e pela idolatria da
identidade, no entanto, não permitiu esse fim ou qualquer comunicação real. A
imagem sombria da noite seguinte é de um novo fascismo surgido de onde poucos
esperavam: a FE foi cercada por um grupo armado encapuzado e com tacapes,
militantes negros transtornados estavam dispostos a fazer uma intervenção denunciatória contra o fato
ocorrido no dia anterior. A performance
política regada à álcool com música, dança e eventuais ofensas e agressões dirigidas
aos ocupantes da faculdade, como não podia deixar de ser, rapidamente evolui
para ameaças mais diretas e hostilidades de caráter bárbaro. Uma mulher e um
homem se despiram e urinaram em frente a faculdade, as críticas dos ocupantes
em relação à agressividade sexual do ato não surtiram nenhum efeito dado que
provinham dos “branquelos racistas da FE”, ao contrário, insuflaram o ódio que
se propagava como chama.
Quando um militante negro da FE se
opôs aos métodos irracionais e tresloucados da gangue esquerdista, foi
rapidamente taxado de “criado de brancos”. Quando o mais pacífico e sereno
militante branco, de olhos baixos, cruzou com os trogloditas para adentrar no
prédio os ouviu dizer “não nos encare mesmo, branquelo filho da puta, ou vai
levar porrada”. O ódio pelo diferente e a paixão pelo igual, o completo desvanecimento
da alteridade, deram luz ao maniqueísmo absoluto e ao binarismo que parece a
tudo poder justificar em nome da defesa desse “eu” fantástico e mitológico
encarnado na coletividade indentitária. Assim, mesmo entre seus pares, se desencadeou
o ódio na ocasião em que uma mulher branca dentre os agressores discordou de
algum encaminhamento prático e logo foi hostilizada por utilizar “ dreds” e ser
do Ceub, ou seja, por fazer “apropriação cultural” da forma de vida negra e não
possuir legitimidade de fala dentre seus pares. Enlouquecida, a mulher pediu ao
amigo que lhe trouxesse qualquer material cortante, tesoura ou faca, para arrancar
os cabelos naquele exato momento - ela seria, no dia seguinte, internada num
hospital público psiquiátrico. Ora, o que nos choca, além da extinção de
qualquer dialética, de qualquer bom senso, é a fluidez do ódio em direção a
qualquer objeto se apresente, por instante fugaz que se seja, como ameaça a
estabilidade da auto-representação, tal como vemos ocorrer a nível global na
xenofobia e militarismo.
Em meio a tamanho caos e
aleatoriedade, o que era impossível há anos atrás ocorreu: deu-se a invasão de
uma ocupação por outros estudantes, movimento estudantil contra movimento estudantil. A luta fratricida substituiu todos os
receios de invasão por policiais ou ataque pelos “coxinhas” e demonstrou o
quanto involuímos e nos tornamos inimigos de nós mesmos. O ataque ao prédio
histórico, tombado pelo patrimônio histórico, fez nada valer o esforço de
preservação de seus ocupantes, não deixou nem uma parede limpa, nem um metro do
chão sem pichações e nem os corrimões sem inscrições ofensivas. Os invasores pintaram
em todos os cantos frases “como a faculdade mais racista”, “faculdade de
brancos” e, ironicamente, numa prateleira de livros humanistas e multiculturais:
“livros brancos racistas”. Não contentes, encontraram o rapaz responsável pela
infeliz pergunta – franzino, homossexual e apavorado – e o cercaram: fizeram o escracho no melhor
estilo policial, o intimidando a cada resposta com gritos e ofensas. Ao final
do vandalismo e tortura, sobrevieram novas ameaças: agora dormiriam lá, veriam
os brancos, e somente eles, limpando as instalações, exigiriam que lhes fosse
servido o café-da-manhã por parte dos ocupantes da FE, etc.
O espetáculo terminou. Eles
foram embora ainda durante a noite. Não se sabe até onde mais os militantes da
faculdade de educação suportariam as humilhações. Sua reação ao ocorrido foi de
absoluta resignação, a inquestionabilidade do “racismo mesmo que inconsciente”
os levou a concluir que não deveriam se manifestar, de que não deveriam reagir
ou sequer emitir uma nota de repúdio ao ocorrido. Mais: sequer deveria ser mencionado o incidente ou vazado para
indivíduos externos. Tal como amiúde costuma ocorrer aos violentados, a culpa
domina a experiência do real oprimido, a vergonha vem a somar injúria à
violência, o silêncio sintetiza perversamente a impotência e necessidade de prosseguir.
O medo da vingança e a insuficiente capacidade de formulação são apenas parte
da explicação, dado que se poderia mesmo desocupar a faculdade em função de evento
tão grave, a outra parte causa de tal absurdos se pode encontra na lógica
paradoxal da esquerda contemporânea, na ambiguidade paralisante na qual as boas
intenções humanistas se casam com o prazer obscuro pela violência, seja na
forma do autoflagelo ou do sadismo.
O
poder obsceno do automartírio, no entanto, não venceu unilateralmente. Parece
que há um ponto em que o ego oprimido ainda resiste e é capaz de alguma reação
contra o superego maternal hodierno. Assim, afinal, foi produzida uma moderada carta de repudio ao ocorrido. A
submissão parece ter perdido força após o influxo do tempo e permitiu um mínimo
de lucidez às vítimas. Esse mínimo, porém, precisa se expandir ao ponto de
inverter toda a lógica doentia de um tempo histórico que se apresenta aquém do
mais ralé senso comum de outrora[1]. A esquerda precisa partir
para o ataque e cortar a própria carne onde está putrefata, precisa combater o
aspecto doentio de si mesma e expurgar sem complacência os marginas de
vermelho: “ser radical é ir até a raiz”, não importa seu “lugar”. Quem almeja
autonomia deve exigir responsabilidade, deve-se ter claro o real significado das
agressões que sofremos e deve-se perceber sem ilusões os atalhos para a
emancipação e as armadilhas em tal caminho.
[1]
Como Zizek observa acerca da tortura que voltou a ser aceita como um problema
na arena do debate público após um aparente avanço em que era vista como monstruosa.
A crise, no entanto, é uma oportunidade de evolução.