domingo, 11 de dezembro de 2016

As ruínas da esquerda e nosso primeiro inimigo.

Le Pen e a Frente Nacional crescem há anos na França. Após as ameaças de saída da Grécia, Itália, Espanha e Portugal, a Grã-Bretanha foi quem de fato saiu da União Europeia – o Brexit. No Brasil, o fascismo jurídico a cada dia parece ganhar mais entusiasmo popular e com seu gozo doentio pelo linchamento moral da “política” ameaça, inclusive, extrapolar seu escopo elitista e antipetista inicial rumo à sacralização do judiciário por si mesmo. Mas a hora da verdade foi a eleição para presidente dos Estados Unidos: “Trump ganhou!” parece ter sido um lamento geral a percorrer o mundo por um instante, tal lamento uniu gregos e troianos, direitistas e esquerdistas, socialdemocratas e conservadores. Ora, qual a razão de tamanho consenso? Qual pressuposto fundamental partilhado por todos e que coube a esse indivíduo romper?
Aparentemente, Trump é sintoma final do fim da era multicultural, do fim da globalização harmônica e consensual. O eterno engodo socialdemocrata e liberal da escolha pelos “menos pior”, a repetição constante da mobilização emergencial fracassou de maneira significativa pela primeira vez em várias décadas. O “taticismo”, que sempre impedia qualquer consideração séria de uma estratégia política, de um projeto social, não resistiu à crise econômica e nem a vitória do status quo pôde ser assegurada pelas manipulações dos marqueteiros mundiais. Agora se expressa claramente a revolta contra a aclamação universal do privilégio, mas ela eclode através do bárbaro egoísmo de uma classe trabalhadora despolitizada e nada solidária. É através de discursos fascistas que o mundo hodierno demonstra a ilusão do “fim da ideologia”.
A lição que se pode tirar de toda essa conjuntura diz respeito a nós mesmos, a esquerda. Qual caminho foi percorrido para que o limitado multiculturalismo decaísse no puro ódio? Como a era cuja a forma de pensamento e ação era a pluralidade e diferença deu à luz ao monstro protofascista? Há muito sabemos quem é nosso inimigo derradeiro, a quem devemos dirigir a “luta final”, qual o poder capaz de tudo para destruir a emancipação, porém devemos agora nos questionar sobre nossos obstáculos de maneira mais ampla: qual o nosso primeiro inimigo? Talvez na mais recente experiência de Ocupação da UNB se possa perceber como os últimos oito anos puderam agravar o quadro lamentável de ruína da práxis crítica e ilustrem o resultado perverso da substituição do choque dual pelas localidades.
A primeira impressão, sob o ponto de vista de visitante esporádico da referida ação política na universidade, era de avanço em aspectos significativos. Ocorreram diversas ocupações menores de 2008 até 2016, mas a seriedade do movimento atual parecia distanciá-la desses eventos menores, apesar de sua relativa pouca visibilidade em relação ao espetáculo midiático do “Fora Timothy”. Agora a UNB estava diante de uma Ocupação generalizada que foi além da anterior ao ocupar não apenas a reitoria, e sim diversos prédios, implantar um sistema de comunicação baseado nas novas tecnologias e mobilizar um número ainda maior de militantes em suas barricadas, se não em suas assembleias.
Mas algo chama atenção a partir de um olhar formado em 2008: o número de lugares reservados e restritos, a regionalização dos milititantes em acordo com seus interesses imediatos (locais de estudo), políticos (os partidos e seus interesses na visibilidade da reitoria) e identitários (mulheres, negros, etc.). A consolidação de espaços políticos seccionados segundo a identidade era universalmente tida como a marca da modernização e consequência do movimento estudantil hodierno, suplantando mesmo considerações práticas sobre a viabilidade numérica, o contingente de pessoas para manterem as ocupações do movimento negro ou das feministas. De fato, as pautas principais eram o fim da reforma do ensino médio, a retirada da “PEC 241” e o reconhecimento do primeiro CA étnico, o CA Quilombo.
O enclausuramento tomado por radicalidade, o regozijo consigo mesmo em detrimento de qualquer totalização, mostrou seu resultado numa noite casual, através de gestos banais, precipitando por meio da contingência, a verdade da loucura em que nos encontramos. Em parte por ironia do destino, em parte por má-fé dos envolvidos, o estopim do problema se deu em meio aos mais inofensivos representantes do movimento estudantil, os estudantes da Faculdade de Educação (FE). Enquanto se encontrava um militante do pretenso “CA Quilombo” na FE, um integrante da comissão de segurança lhe perguntou: “É seu esse casaco? Não é da minha colega?”. A resposta furiosa ressaltou o racismo de inquirir um negro sobre roubo, denunciou o peso secular do preconceito e opressão racial cristalizados naquela pontual indagação.
            Findado aí o caso, alcançar-se-ia, talvez, justiça. O frenesi gerado pelo maniqueísmo e pela idolatria da identidade, no entanto, não permitiu esse fim ou qualquer comunicação real. A imagem sombria da noite seguinte é de um novo fascismo surgido de onde poucos esperavam: a FE foi cercada por um grupo armado encapuzado e com tacapes, militantes negros transtornados estavam dispostos a fazer uma intervenção denunciatória contra o fato ocorrido no dia anterior. A performance política regada à álcool com música, dança e eventuais ofensas e agressões dirigidas aos ocupantes da faculdade, como não podia deixar de ser, rapidamente evolui para ameaças mais diretas e hostilidades de caráter bárbaro. Uma mulher e um homem se despiram e urinaram em frente a faculdade, as críticas dos ocupantes em relação à agressividade sexual do ato não surtiram nenhum efeito dado que provinham dos “branquelos racistas da FE”, ao contrário, insuflaram o ódio que se propagava como chama.
            Quando um militante negro da FE se opôs aos métodos irracionais e tresloucados da gangue esquerdista, foi rapidamente taxado de “criado de brancos”. Quando o mais pacífico e sereno militante branco, de olhos baixos, cruzou com os trogloditas para adentrar no prédio os ouviu dizer “não nos encare mesmo, branquelo filho da puta, ou vai levar porrada”. O ódio pelo diferente e a paixão pelo igual, o completo desvanecimento da alteridade, deram luz ao maniqueísmo absoluto e ao binarismo que parece a tudo poder justificar em nome da defesa desse “eu” fantástico e mitológico encarnado na coletividade indentitária. Assim, mesmo entre seus pares, se desencadeou o ódio na ocasião em que uma mulher branca dentre os agressores discordou de algum encaminhamento prático e logo foi hostilizada por utilizar “ dreds” e ser do Ceub, ou seja, por fazer “apropriação cultural” da forma de vida negra e não possuir legitimidade de fala dentre seus pares. Enlouquecida, a mulher pediu ao amigo que lhe trouxesse qualquer material cortante, tesoura ou faca, para arrancar os cabelos naquele exato momento - ela seria, no dia seguinte, internada num hospital público psiquiátrico. Ora, o que nos choca, além da extinção de qualquer dialética, de qualquer bom senso, é a fluidez do ódio em direção a qualquer objeto se apresente, por instante fugaz que se seja, como ameaça a estabilidade da auto-representação, tal como vemos ocorrer a nível global na xenofobia e militarismo.
            Em meio a tamanho caos e aleatoriedade, o que era impossível há anos atrás ocorreu: deu-se a invasão de uma ocupação por outros estudantes, movimento estudantil contra movimento estudantil. A luta fratricida substituiu todos os receios de invasão por policiais ou ataque pelos “coxinhas” e demonstrou o quanto involuímos e nos tornamos inimigos de nós mesmos. O ataque ao prédio histórico, tombado pelo patrimônio histórico, fez nada valer o esforço de preservação de seus ocupantes, não deixou nem uma parede limpa, nem um metro do chão sem pichações e nem os corrimões sem inscrições ofensivas. Os invasores pintaram em todos os cantos frases “como a faculdade mais racista”, “faculdade de brancos” e, ironicamente, numa prateleira de livros humanistas e multiculturais: “livros brancos racistas”. Não contentes, encontraram o rapaz responsável pela infeliz pergunta – franzino, homossexual e apavorado –  e o cercaram: fizeram o escracho no melhor estilo policial, o intimidando a cada resposta com gritos e ofensas. Ao final do vandalismo e tortura, sobrevieram novas ameaças: agora dormiriam lá, veriam os brancos, e somente eles, limpando as instalações, exigiriam que lhes fosse servido o café-da-manhã por parte dos ocupantes da FE, etc.
O espetáculo terminou. Eles foram embora ainda durante a noite. Não se sabe até onde mais os militantes da faculdade de educação suportariam as humilhações. Sua reação ao ocorrido foi de absoluta resignação, a inquestionabilidade do “racismo mesmo que inconsciente” os levou a concluir que não deveriam se manifestar, de que não deveriam reagir ou sequer emitir uma nota de repúdio ao ocorrido. Mais: sequer deveria ser mencionado o incidente ou vazado para indivíduos externos. Tal como amiúde costuma ocorrer aos violentados, a culpa domina a experiência do real oprimido, a vergonha vem a somar injúria à violência, o silêncio sintetiza perversamente a impotência e necessidade de prosseguir. O medo da vingança e a insuficiente capacidade de formulação são apenas parte da explicação, dado que se poderia mesmo desocupar a faculdade em função de evento tão grave, a outra parte causa de tal absurdos se pode encontra na lógica paradoxal da esquerda contemporânea, na ambiguidade paralisante na qual as boas intenções humanistas se casam com o prazer obscuro pela violência, seja na forma do autoflagelo ou do sadismo.
O poder obsceno do automartírio, no entanto, não venceu unilateralmente. Parece que há um ponto em que o ego oprimido ainda resiste e é capaz de alguma reação contra o superego maternal hodierno. Assim, afinal, foi produzida uma moderada carta de repudio ao ocorrido. A submissão parece ter perdido força após o influxo do tempo e permitiu um mínimo de lucidez às vítimas. Esse mínimo, porém, precisa se expandir ao ponto de inverter toda a lógica doentia de um tempo histórico que se apresenta aquém do mais ralé senso comum de outrora[1]. A esquerda precisa partir para o ataque e cortar a própria carne onde está putrefata, precisa combater o aspecto doentio de si mesma e expurgar sem complacência os marginas de vermelho: “ser radical é ir até a raiz”, não importa seu “lugar”. Quem almeja autonomia deve exigir responsabilidade, deve-se ter claro o real significado das agressões que sofremos e deve-se perceber sem ilusões os atalhos para a emancipação e as armadilhas em tal caminho.



[1] Como Zizek observa acerca da tortura que voltou a ser aceita como um problema na arena do debate público após um aparente avanço em que era vista como monstruosa. A crise, no entanto, é uma oportunidade de evolução.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O Filme “A Chegada”: Caminhos para a globalização

A globalização finalmente alcançou um ponto em que coloca em xeque a estabilidade dos espaços hegemônicos do capital, as relações internacionais fundamentalmente definidas na sequência da Segunda Guerra Mundial e que apenas se reafirmaram no progressivo sufocamento da alteridade através Guerra Fria, com o colapso da União Soviética, brilharam por alguns instantes como irrevogáveis. O arranjo final do mundo era, então, o civilizado mundo ocidental, o triunfo do American Way Of Life contra o autoritarismo socialista e a barbárie nazista, contra os poderes do Leste e o findado império Alemão, sua vitória era lentamente saboreada perante a paulatina erradicação até mesmo das “excentricidades culturais” da Europa Ocidental.
            A ofuscante vitória, no entanto, numa inversão dialética, começa a aparecer como mais um ciclo histórico. A eliminação dos poderes inimigos gerou novas forças intimidadoras ainda mais globais, o islã fundamentalista soou o gongo no início do século, a reestruturação da Rússia (seu sobrevivente poderio militar), a força alemã na atualmente instável Europa e a acelerada acumulação na China demonstram que a “pax ocidental” está ameaçada. A anti-globalização não é mais um movimento das minorias barulhentas e sem esperanças é, agora, um movimento do próprio Capital em sua luta por autoperpetuação e ameaça o quintal da democracia, as medidas autoritárias contra o “terror” (as denúncias de Snowdem, Assange, etc.), a força da xenofobia (Trump, Le Pen, etc.), os “golpes democráticos” e referendos solenemente atropelados (Brasil, Paraguai, Colômbia, Grécia, etc.) demonstram que novos choques e perturbações são inevitáveis.
            Os filmes hollywoodianos significativos, enquanto dramatização de nosso descompasso com o mundo, mapeiam o novo cenário implacavelmente. Jameson demonstrou na ficção científica do século XX o olhar cultural dirigido para os impasses de cada época. Os impulsos futuristas perante o meramente desconhecido. O pavor perante alienígena, o estranho, e a desconfiança com a alteridade absoluta implícita nessa reprodução da lógica dicotômica da Guerra Fria. O regozijo crescente diante da identidade absorvente na era do triunfo do Capital, o deleite com o corpo extraterrestre ou a aventureira exploração do mundo androide, que reproduzia o poderio perfeito de nossa época sobre si mesma.
            A Chegada (2016) representa a etapa atual do trajeto humano, o momento em que novas forças estranhas emergem no cenário do idílio burguês ocidental. O filme retrata a aparição de doze espaçonaves alienígenas em nove pontos distantes da Terra (EUA, 2 na Rússia, Venezuela, Austrália, Serra Leoa, Reino Unido, Dinamarca, Japão, China, Paquistão e Sudão) e cuja lógica é desconhecida. A pergunta que aparece de saída é significativa: “Qual o propósito deles na Terra?”, tal como a assombrosa e onipresente hipótese de resposta implícita em “para que nove naves se a intenção deles for pacífica?”. Quem é chamada para lidar com tal contato imprevisível é a Dra. Louise Banks, linguista acadêmica e digna representante da cultura ocidental.
            A tensão, o medo e ansiedade dos humanos nesse primeiro contato toma conta da película em diversos momentos nos quais o espectador é conduzido, junto à Louise, por som e câmera a um clima de suspense inteiramente digno de um contato em primeiro grau. O suporte emocional para a protagonista lidar com a indizível angústia de sua tarefa vem de seu companheiro humano, Dr Ian Donnelly, físico teórico, mais preocupado com números do que com intenções alienígenas. As oposições da trama, portanto, estão desenhadas: a mulher e o homem, as ciências humanas e as exatas, os extraterrestres e os seres humanos, os dois alienígenas (Abbot e Costello), os Estados Unidos e a China, os militares e os civis, etc.
            As perguntas, por conseguinte, são: como lidar com tais diferenças?; Tratamos com diferenças ou antagonismos?; nos apegamos a nossa identidade e reagimos ou nos congregamos? Quase todos os pressupostos apontam para a belicosidade, para a agressão preventiva, para a desconfiança e medo. Tal ocorre com a mídia histérica, com o ataque de um grupo de soldados rebeldes e, sobretudo, no militarismo chinês, cujo responsável pela mediação com os chamados heptapods é feita pelo general Shang. Mas a aparente oposição diametral com o militar chinês é apenas superficial, dado que o exército estadunidense também se mostra disposto a tudo para evitar ceder vantagens aos rivais.
            As contra tendências ao conflito se expressam em Louise, em seu relacionamento com Ian, no compreensivo militar Weber, na comunicação científica aberta dos países cede do contato hepatapod, porém a ameaça de irrupção da luta é uma sombra onipresente. Quanto tempo pode durar a abertura e reciprocidade entre EUA e seus inimigos China, Rússia ou Venezuela? Quanto pode dura a paciência com o demorado método de alfabetização dos perturbadores visitantes por Louise? Quanto pode sua própria mente resistir a tensão e medo ante a expectativa de resposta?
            As descobertas de Louise apontam sem cessar para sua intuição de que a linguagem é uma ponte, uma possibilidade de conviver com o diverso, de que o outro pode ser compreendido à luz de boa-vontade multicultural. Mas é também esforço o que tal postura exige, perseverança para conquistar uma lógica diversa, coragem para se desarmar perante o abismo do inicial incognoscível. Cada passo de sua pedagogia interplanetária reafirma o esforço; “qual é o propósito de vocês na Terra?” exige a confissão e expressão da interrogação e da incerteza (“?”); pede a descoberta da existência ou não da identidade e diferença no seio desses seres estranhos (“vocês”); o contato e a imersão na intensão ou inconsciência da alteridade (“propósito”).
            A angústia, a investigação e compreensão são os passos sucessivos para a entrada no mudo alheio, para adentrar na lógica dual, na “cena do dois”, segundo as palavras de Alain Badiou. O ato literal de se despir, de retirar a indumentária preventiva e desnecessária que mediava e embarreirava o “face-a-face” com os alienígenas é, para Louise, uma ação perfeitamente análoga a sua comunicação crescente com o Dr. Ian e a exposição da fragilidade deixa de sê-lo na medida em que tal abertura é a própria superação da aridez e inimizade que antes dominava a vivência.
O diálogo com os heptapods, portanto, é a possibilidade de expressar o dilema geopolítico, o drama afetivo e a angústia existencial. Os perturbadores “flasbacks” de Louise representam precisamente as dificuldades e crises que se anunciam perante o projeto de síntese almejado por ela, a possibilidade de reconciliação e concretude vislumbrada pela vontade e ameaçada pela objetividade hostil[1] . Seu aprendizado da linguagem alienígena a coloca em novo patamar existencial, ela aprende a pensar/viver de maneira integradora, global, simultânea. Ao mesmo tempo, a imperfeição ainda reside na vida, ela ainda é um híbrido de humano e pós-humano, os ruídos se fazem sentir na sua confusão, em seus receios e sobretudo nos fracassos objetivos que a vida ainda lhe reserva.
O que a língua heptapod ensina é que a linearidade e a classificação são a linguagem do medo e escassez, dos nacionalismos que irrompem no mundo hodierno e a solução fílmica para tais limites é tolerância, o pensamento cíclico, a irmandade e a aceitação. Mas a lição do eterno retorno ou do budismo ocidental não demonstra sua fraqueza na própria estrutura de sua ideologia da resignação? Ao que parece, o seu “imperativo da paz”, do “jogo de soma não zero”, guarda como segredo a noção de irreversibilidade e fatalidade, ou seja, ela obriga a acolher igualmente o indesejado. De fato, em suas três dimensões (individual,  dual e geopolítica), a “mensagem” aqui é que deveríamos acatar o horror da morte, o fracasso do dual, e, em última instância, a possibilidade da fratricida Terceira Guerra. “O que vale é o percurso” nos diz o subjetivismo de um tempo histórico abstrato e agora fica claro que a moral de rebanho, típica do cristianismo em uma totalidade anterior, atualmente se encarna em outras ideologias.



[1] É possível aqui pensar no “realismo” (em oposição ao “simbolismo”) de Lukács, da tentativa de unir dramaticamente sujeito e objeto. 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Identidade e sua Antinomia:

            A compulsão pelo similar não é auto evidente como pode parecer. A natureza da história, sua marcha irrefreável de mudança por meio do trabalho demonstra como a alteridade desempenha um papel central na existência do gênero humano, o modo como a carência nos impulsiona em busca da alteridade como única forma de realização, como sede pelo novo e atração pelas promessas das diferenças. O poder absorvente do outro, portanto, reside em seu constante desafio e incentivo a nossa própria totalização, ao nosso processo laboral de nos completarmos através do jogo de conquista daquilo que nos escapa.
            Em sua melhor faceta, o amor se anuncia como reconciliação com o mundo, como “comunismo mínimo” (Badiou) que nos permite a experiência de outra forma de existência, da forma dual com a qual o regozijo de mim mesmo cede espaço ao partilhamento trans-individual. A despeito de Lacan e Badiou, a despeito de sua lógica de que “não há relação sexual”, de que só há o gozo próprio com a mediação alheia no sexo, vejo a própria “mediação” como constituinte de necessidade ontológica do outro. O corpo do outro em sua singularidade que nos escapa, em sua lógica irredutível, em seu poder oculto nos chama para si. 
A sexualidade, por conseguinte, ilustra de maneira privilegiada os potenciais e limites de uma época dominada pela ética da identidade, pelo deleite com a imediaticidade quase só física do visível em detrimento do intangível[1], pela adoração microscópica do detalhe em prejuízo do quadro inteiro. O mistério, encanto e temor perante o diferente caracterizaram a bela época do coquetismo, do olhar significativo e provocação singela que guardavam em si uma esperança quase mística pelo todo outro, pelas promessas de maravilhas desconhecidas e transcendentes.
A compulsão pelo consumo, pela fungibilidade universal de corpos e desejos, por vezes, esconde o ódio por tal diferença, sua equalização serial é anestesiante. O processo se retroalimente e excreta a ideologia visceral da limpeza, do controle, a depilação de toda aresta, o amortecer de toda força selvagem pela literal emplastificação do ato sexual. As necessidades pragmáticas embutidas em tal autocontrole são auto evidentes, mas não anulam seu caráter ideológico.
Ocorre, no entanto, de estarmos diante da ameaça de inversão dialética desse quadro pós-histórico. A apreciação da pureza, a imersão doentia na técnica e ação imediata, parece alcançar seus estertores vitimada pela própria perversidade que lhe deu origem. Dado que se esgota o potencial rebelde da mecanicidade e instrumentalidade, ela só encontrar escape em sua própria radicalização, no entanto, tal extremo frequentemente pode resultar num retorno obsceno e inesperado da dimensão humana sob a forma de vexame, inquietação e constrangimento daquele ineliminável âmago de subjetividade que resiste nos sujeitos inclusive a despeito de sua vontade. Toda a cultura, em suas dimensões individuais, duais e coletivas, parece estar diante de tal abismo: para onde vamos?




[1] Jameson faz a análise da regressão no que diz respeito a FC em sua idolatria pelo corpo alienígena em detrimento do mistério e suspense anteriores.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Um Mapa da Ideologia por Sinopses



             A Vida dos Outros (Alemanha, 2006).
                Li em algum lugar que A Vida dos Outros se caracterizava por não ser uma luta do bem contra o mal, o que só pode me levar à conclusão de O Senhor dos Anéis também não o é na percepção desse crítico esquecido. O filme, menos inconsequente com a política do que Adeus Lênin, troca o humor agitado por uma dramaticidade suave de tons acinzentados de personalidades reprimidas. Aqui a sociedade se apoia numa vigilância irrestrita, mas que só tem como fundamento as arbitrariedades de vilões burocratas. No caso, um artista bem comportado torna-se alvo de investigação após um palpite policial, posteriormente alimentado por um cacique gordo e tarado que deseja sua mulher. Ora, a tensão explorada pelo filme é entre a parte dos alemães que se entrega à lógica má do sistema e aqueles desenvolvem sua bondade intrínseca: a esposa que se vende à luxúria do influente burocrata (mas se arrepende); o escritor que permanece neutro perante a barbaridade do sistema; e, a grandiosa cereja do bolo, o policial endurecido que desperta como um liberal bondoso. 
                O que poderia haver de rebelde na crítica é anestesiado pela vitória dos “não corrompidos”. Naturalmente, os torturantes interrogatórios sem vigília, as ameaças de perseguição profissional, a elaboração de leis do comportamento (a emoção ao se defender, o padrão da memória), os suicídios volumosos, e toda sorte de maldades aparecem como resolvidos no triunfo humano: a queda do Muro de Berlim. A humanidade, claro, jamais viu monstruosidades equivalentes no ocidente livre: nem do pau de arara, nem no macartismo, nem nos testes behvoristas da CIA e, ainda menos, nos milhares de desaparecidos do amigo de Thatcher, Pinochet. Nada é tão confortável e fácil quanto a crítica ao que já não do que não é presente, do que já temos como vitória assegurada. Nada é tão bovino quanto ver trevas apenas no passado.
                Não se pode dizer que se trate de um filme profundamente reacionário, pois para além de sua sensibilidade política antiutópica se sobressai, de modo infeliz e superficial, um propagandismo totalmente vulgar, a começar pela adaptação em 1984 (!); na reconciliação artística proveniente da inspiração que se volta do sistema corrupto para a bondade redescoberta no mundo (!!); aliás, só se retira dos grandes críticos o momento moral, como no caso de Marx, Brecht, ou Lênin, que não poderia ser malvado na revolução se tivesse se permitido ouvir mais música clássica (!!!); por fim, na maravilhosa redenção do policial que, apesar da falência e humilhação, é secretamente reconhecido com um “homem bom” (!!!!). Ah, o que teria sido do homem bom sem os horrores do socialismo? Sem os vingativos burocratas socialistas ele jamais teria se tornado um humilde carteiro num sujo subúrbio de Berlim, tal como de certo não aconteceu com o restante da população do leste e nem agora acontecerá com os Sírios...

              Que horas ela volta?(Brasil, 2015)
               Mas que nem toda maldade se encontra no passado. Que nem toda violência provem dos inimigos do “nosso modo de viver” é algo que felizmente apareceu no vestígio de crítica existente no cinema brasileiro, “Que horas Ela Volta?”. Aqui a empregada Val (Regina Casé) deixou a filha há muito tempo, não parece saber se voltará a vê-la, não sabe se voltará a se reencontrar consigo mesma.

                No entanto, nada disso ocorreu por causa de qualquer encarnação do mal, nenhum ditador cruel precisou mostrar o rosto para que sua vida fosse diminuída, desvalorizada. Tampouco ela precisou representar alguma ameaça ao governo, à elite ou sequer pertence aos privilegiados críticos, sua vida é apenas irrelevante dada à abundância de gente comum desimportante como ela.

                Se está tão longe do bem e mal aqui, na verdade, ao ponto de que os patrões opressores nada mais são do que indivíduos infelizes, entediados e fracassados: o herdeiro pródigo, sem grandes horizontes, mas carinhoso; o marido depressivo, pintor fracassado, e de casamento frustrado; a esposa ressentida, elitista e de gentileza estéril. O desprezo pela empregada não é teórico, não é raivoso, sequer proposital. Trata-se da desconsideração, desprezo pela qualidade da vida do outro em sua forma mais difusa, e mais real.

                A exaltação é desnecessária até a chegada da filha da empregada, daquela que começa a desafiar as fronteiras invisíveis do espaço da elite. É o que diz Christian Dunker: “O conflito é novamente caracterizado por uma espécie de dilatação da presença do serviçal. Assim como Val deve aparecer para o que for necessário, antecipando demandas e dificuldades de seus patrões, ela deve logo em seguida tornar-se invisível quando se trata de existência não funcional.”.

                A filha é excesso que atrapalha a complacência e colaboração de Val com os mecanismos da coexistência pacífica das desigualdades. A covardia da mãe, o abandono da filha Jéssica, é propositalmente vingado por esta quando se propõe abertamente a ser um incômodo para a família que a hospeda. Ducker descreve: “Ela gruda, se insinua, aceita ser tratada como hóspede, comporta-se como um objeto intrusivo, age como se não soubesse que existe uma ordem e uma lei, um semblante que mantém sob si a verdade de um discurso, que é o discurso da segregação.”. 

                Enquanto a Val de Regina Casé consegue ser a mais perfeita imagem do pobre subserviente e dedicado, Jéssica cria um mal estar terrível no espectador, o tempo todo faz notar, até sem mesmo querer, a insatisfação da patroa com seu espaço invadido, o desejo patético do patrão por ela, e o jeito abobalhado do jovem Fabinho. Mas cada explosão esperada dessa tensão é angustiosamente protelada, as fronteiras expostas pela tensão não chegam a ser quebradas, mas exploradas em sua extensão, elaborando um meticuloso, invulgar e doloroso mapeamento.

                De modo quase certo, como indica o ideólogo Sérgio Alpendre, o filme tem qualquer afinidade com o lamentável e injustificável militantismo petista. A patroa chega a dizer diante da irrealista “vitória” vestibulanda da jovem nordestina que o “o país mudou mesmo”. Na verdade, essa vitória nada mais traduz do que a capitulação de setores progressistas da sociedade ao consolo perante a invencibilidade do capitalismo. Sem dúvida o aspecto mais tolo do filme é a ideia de que as fronteiras podem ser subjetivamente superadas no âmbito da realidade que engendra fronteiras. Naturalmente, isso vai agradar em variados graus reformistas com Ducker, que esperam o “reconhecimento” da importância dos direitos fundamentais, e até mesmo Safatle, que acredita na força da suposta ascendência dos pobres.

                Apesar de tudo, não se pode dizer que o filme perca sua força crítica em decorrência de seu “petismo”. A afirmação simbólica de Val ao demitir-se, entrar na piscina, se libertar após o afastamento do elemento carinhoso da família (o jovem) representa um momento verdadeiro de utopia, é realista. Mas a libertação advém justamente do aspecto objetivo, bruto de sua crítica e jamais dos sentimentalismos subjetivos e celebrações. Como observa Ducker sobre a apresentação imagética da perturbação simbólica: “não é neste plano subjetivo que Jéssica nos é apresentada, mas numa espécie de plano subjetivo com uma semi-torção, no qual a câmera está perto do rosto da personagem, mas seu rosto vira-se para o lado, como que a recusar a sua psicologização, sem por outro lado, recorrer ao distanciamento...”

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O Conciliador Azul




            As assembleias presentes parecerão piadas aos homens dos Conselhos. Claro que foi de surpreender ver um esforço de pequenos burgueses para participar de decisões coletivas, tentando estabelecer um diálogo sobre algo para além de suas carreiras e lazeres individuais, uma encenação fantástica do elo perdido buscando construir ferramentas pela primeira vez. Mas a manipulação técnica e as justificações espetaculares, o mito do poder separado, impunham-se de maneira acachapante. Na media, havia um desarticulado ar de desconfiança – o que até certo ponto é o que resta de boa notícia em meio à distopia. Mas essa revolta mediana se dissolve, tal como ocorre a nível nacional, em sua própria superficialidade imagética: a crítica irracional, a indignação, assume como pano de fundo a contraimagem espetacular, a oposição artificial que se faz entre puras palavras diversas.
            Alguns poucos se levantavam acima da mediocridade, a elite impotente (A Brecha), mas seu discurso o que pode diante de números e dados? E, se outros dados são contrastados, ainda assim, são números contra números, então parece melhor “confiar” (deixar nas mãos, desconfiar passivamente) dos experts, dos técnicos de sabe-se lá o quê, do misterioso e intocável pessoal do andar de cima. Claro, a democracia exige que alguém seja expurgado pelo mundo não ser o que queríamos, portanto, nada melhor que ameaçar o avatar do andar de cima, o capacho assalariado deles não voltará, não passará, não será perdoado e, se possível, terá o salário reduzido (porque não?). Ora, o que mais eles podem fazer se não pedir o troco do ladrão? O mito moral apresenta-se como única alternativa utópica no momento em que desaparece a corrente fria da utopia, o mapeamento do real, ou seja, a moral aqui nada mais é do que o desejo impotente e inconsciente oposto à pura instrumentalidade, porém a anos-luz da ação consciente e livremente determinada.
                O Salvador da Pátria e mantenedor da paz será sempre o sujeito de fala mansa, opequeno sátiro que agrada a todos e medeia entre o sujeito expectador e o nãosujeito espetacular. Como ele quer o bem de todos, estuda copiosamente osnúmeros, mas entende a fragilidade de quem deve pagar a conta, ele medita cuidadosamentesobre os dois lados da questão e chega sempre a conclusão de que o melhor é diminuiçãodo sobrepeso sobre os expectadores , livrando-os da tarefa de buscar soluçõespor contra própria e, no entanto, sem desconsiderar o fato de que é preciso terresponsabilidade com o estabelecido, moderação.